segunda-feira, 26 de março de 2012

Vocábulo

Em desuso, "pinchar" mostra trajetória dos vocábulos que são descartados cedo demais

Mário Eduardo Viaro

 Quando criança, convivia no interior de São Paulo com o curioso verbo pinchar e ainda o ouço por lá esporadicamente. O sentido da palavra é o de "jogar fora" (pincha fora essa porcaria) ou "mandar embora" (pincha esse fulano daqui). Teria sido uma das muitas palavras que ouvi menos na capital do Estado e, por conseguinte, deixei de usar. Quando indago às pessoas se conhecem esse verbo, comumente escuto respostas como "minha avó fala isso". Aparentemente, para muitos falantes, esse verbo é algo do passado, que deixará de existir tão logo essa geração antiga morrer.

"Tradição" vem do latim traditio, por sua vez, do particípio traditus, associado ao verbo tradere, que se dizia, no latim antigo, transdere, formado do prefixo trans- (para o outro lado, para além) e do verbo dare (dar) com mudança vocálica apofônica: "tradição", etimologicamente, é o ato de entregar, de passar adiante, de transmitir (sobretudo valores culturais).
As palavras são, em sua grande maioria, resultados de uma tradição: elas já estavam lá antes de nascermos. O rompimento da tradição de uma palavra equivale à sua extinção. A gramática normativa muitas vezes colabora criando preconceitos, mas o fator mais forte que motiva os falantes a extinguirem uma palavra é associar a palavra, influenciados direta ou indiretamente pela visão normativa, a um grupo que julga não ser o seu. O pinchar, associado ao ambiente rural, onde há pouca escolaridade e refinamento citadino, está fadado à extinção?
É louvável que nos preocupemos com a extinção de ararinhas-azuis ou dos micos-leão-dourados, mas a extinção de uma palavra não promove nenhuma comoção, como não nos comovemos com a extinção de insetos, a não ser dos extraordinariamente belos. Pelo contrário, muitas vezes a extinção das palavras é incentivada.

Eugenia
A razão dessa política de eugenia descarada da língua reside em preconceitos e no ideal normativizante que existe desde o século 17, quando Vaugelas já usava na língua princípios semelhantes ao inutilia truncat arcadista: a boa língua é aquela em que a variação sociolinguística não se reflete. Pregou-se a inutilidade da abundância de vocabulário (sobretudo no jargão científico), valores que foram questionados no Romantismo. Esses valores ainda existem mais fortes do que nunca, com a tendência neonormativa atual.
Muitas pessoas, portanto, conhecem a palavra, mas acham-na feia e daí concluem que está errada e "não existe", assim como "subir para cima" ou "pra mim fazer", segundo esse raciocínio, não existiriam. Existem. Negar a existência de algo existente parece ser uma patologia psicológica séria. Como não existe uma frase ou construção que ouço o tempo todo? Como não existe uma palavra que, se colocada num buscador da internet, como o Google, nos devolve milhões de ocorrências?
Existem sim. Só não são aceitas por causa da mentalidade vaugelaisiana. Para evitá-la nos estudos da linguagem, a Linguística se distanciou da Gramática. Estudos que se pretendem científicos não podem pactuar com uma afirmação absurda dessas. Os dados são mais importantes do que os valores no julgamento da existência.
Outras pessoas, porém, dizem sinceramente e sem preconceito que nunca ouviram falar da palavra antes. Isso é tão frequente em algumas áreas do Brasil, como no Nordeste, que nos faz pensar que se trata de um fenômeno regional. Em Pernambuco, o sentido de "jogar fora" é expresso também pelo verbo "sacudir". Os atlas linguísticos nem sempre resolvem o problema, mas depoimentos me fazem pensar que o uso da palavra "pinchar" se concentra em Minas Gerais, São Paulo, Paraná e Rio Grande do Sul.
Não tenho dados de Rio de Janeiro, Santa Catarina e Espírito Santo. Tampouco nada muito claro do Centro-Oeste, norte de Minas, sul da Bahia. Mesmo no Estado de São Paulo, aparentemente, em alguns locais, a palavra é bastante usada, até por jovens. Já em outras, sua incidência é pequena ou aparentemente inexistente. E é difícil sempre dizer se não existe mesmo ou se as pessoas indagadas é que nunca ouviram, dadas suas experiências de vida.

Origem
Surpreende que alguns lugares do Vale do Paraíba afirmem que nunca ouviram tal palavra, já outros, que ela é muito frequente lá; que paulistanos atribuam isso ao interior de São Paulo e outros paulistanos de muitas gerações afirmem que ela é usada dentro da família. Ou ainda que, em Goiás Velho, alguns digam que não exista e apareça na poesia do cuiabano Manoel de Barros ("a gente amarrava o bilhete numa pedra presa por um cordão/ E pinchava a pedra no quintal da casa dela"), como me apresentou em conversa informal, entre outras ocorrências literárias, o professor doutor Waldemar Ferreira Netto, da Universidade de São Paulo. Também em José de Alencar, Aluísio de Azevedo e em Taunay a palavra aparece, como podemos verificar consultando o sítio www.corpusdoportugues.org. Para os que acham que língua correta (e existente) é aquela usada pelos "bons autores", decerto tal descoberta é surpreendente.
Mas a palavra veio de onde? Em Portugal, também ocorre "pinchar fora", como se vê em Fialho de Almeida, em José Régio, mas, aparentemente, "pinchar" tem, mais frequentemente, no falar lusitano, o sentido de "saltitar", "dar pulos" ou "dar pinchos", como se diz. O mesmo ocorre com o galego. Também o sentido de "mandar embora", tão comum no falar gaúcho, se encontra em Fernando Namora.
Numa pesquisa etimológica, vemos que o sentido brasileiro aparece já no século 16. Rafael Bluteau em 1720 afirma que "pinchar" é "palavra antiquada, ou pouco usada. Val o mesmo que lançar fóra com violencia, ou estrondo". O exemplo que oferece está na Terceira Década, de João de Barros, de 1563 ("poserãolhe fogo, o qual tanto que foi dar na polvora, pinchou logo as cubertas pera o ar & o casco se foi ao fundo"). No dicionário português-holandês de 1712, de Abraham Alewyn e Joannes Collé, a palavra aparece com sentidos próximos aos que também existem no galego: "mandar embora", "jogar fora". Outro sentido, o de "fazer sair batendo", como que tirando o pó de um tapete, lembra o "sacudir" pernambucano.

Imagens
A palavra "pinchar" em castelhano tem os sentidos de "cutucar, espetar, ferir" (no lunfardo, também "morrer" e "fazer sexo"). Corominas imagina que "pinchar" do castelhano tenha vindo de uma mistura de punchar (variante de punzar) com picar e que, pela diferença de sentido, nada tenha a ver com o "pinchar" português. No castelhano, a palavra aparece desde o século 15, mas pode remontar ao latim vulgar, como vemos no italiano pinzare, no occitano pinsar, no francês pincer e no inglês to pinch (beliscar). Mas seria de fato tão distinto assim?
Imaginemos a cena de alguém que quer pegar algo que está bem alto, como uma fruta. Como fazer? Uma forma seria cutucando-a com uma vara; outra, jogando uma pedra. Uma mudança do modo como se faz a ação (jogando, não cutucando) para atingir um objetivo (a queda da fruta) teria sido subentendida e aparentemente prevaleceu nos valores semânticos do português.
Da mesma forma, a queda da fruta, ou seja, o resultado da ação, pode ter sido enfatizada em alguns sentidos como o do galego, língua em que pode significar tanto "tirar con algo que está pendurado cunha vareada ou cunha pedrada", quanto "cortar unha árbore polo pé; cimbrar, verga"', conforme nos informa o Gran Dicionario Xerais da Lingua.

Português
Fora da Europa, a palavra, ainda que rara em Portugal nos tempos de Bluteau, já havia chegado a Cabo Verde. Na canção Poc li dent é tchéu, de Mayra Andrade, aparece a seguinte frase "Li-dént é tcheu, fortuna la fóra é fantazia/ Ka-nhos pintcha-m pa-m bai/, Fidj ka ta kriá na ninhu sem pai" ("O que tem lá dentro é muito, a fortuna, lá fora é fantasia/não nos mande embora/ um filho não é criado no ninho sem o pai").
Nicolas Quint no seu Dictionnaire cap-verdien-français confirma a existência de pintchar na ilha, dando o exemplo pintcha káru (empurrar o carro). A palavra viajou ainda mais longe e é comum nos glossários indoportugueses de Sebastião Rodolfo Dalgado, que afirmam que pinchar era usado no norte da Índia e em Mangalore com o sentido de "lançar, expulsar com violência". A palavra também se usava em Malaca e em Macau.
No Brasil do começo do século 20, o registro de Amadeu Amaral mostra-nos frases como "Pinche fora êsse cigarro, e pite êste charôto", "(Um cão) pinchô ua orêia in riba da cabeça", "Fui de verêda pro quarto, despois de tê apinchado a ferramenta num canto da sala", "Tratei de me apinchá pra outra banda, porque a noite ia esfriando".
Numa famosa canção de Adoniran Barbosa, "Iracema, fartavam vinte dias pra o nosso casamento/ Que nóis ia se casar Você atravessou a rua São João/ Veio um carro, te pega e te pincha no chão".

Memes
O interessante é que Amaral lembra que a palavra é usada por Catulo da Paixão Cearense ("má cheguei, me foi pinchando/ lá pra Avinida Cintrá"), mostrando-nos que, em alguns estados do Nordeste, tal palavra deve ter sido usada ou ainda se usa. Antes de Amaral, já em 1912, na fala de Juó Bananére já encontramos essa palavra no seu português macarrônico de falso italiano: "fiz onti un reide inzima du inzercito astriaco i apinxô maise di ventis milla bomba inzima dos nimighio" (O Pirralho, SP, ano IV, n. 190, 5/6/1912). Para essa informação, agradeço minha orientanda Juliana Leone.
Enfim, por mais rara que seja a palavra, ela existe aqui, em Portugal e na Galiza, ninguém pode negar. É antiga, literária e polissêmica. Nossos preconceitos aparentemente também são de longa data, pois Amaral já diz que "no Brasil, (seu uso) é defeso à gente educada", mas as palavras são memes, transitam, não se extinguem tão facilmente. Sobrevivem aqui e ali, renascem com vitalidade, com o sentido arcaico ou desenvolvem novos, seu rastreamento é dificílimo (não temos a huge chart que o linguista Bloomfield idealizara), sua morte é sempre prematuramente declarada. E é só por meio desse rastreamento que se faz a boa etimologia e não do julgamento parcial e falho do falante, que só tem a certeza de que fala dada língua, mas desconhece o léxico passivo até mesmo de seus vizinhos.

Intuição
O julgamento baseado na intuição do falante, incensado por teorias linguísticas, pode valer como declaração de autonomia perante a coleta de dados, mas faz, na verdade, crescer nossa ignorância sobre o real funcionamento da linguagem.
É o esteio dos julgamentos parciais que proliferam nas gramáticas normativas. Assim, antes de propormos uma triste Endlösung (aniquilação) normativa das formas que não são correntes, convencionais e conhecidas pela mentalidade mediana dos falantes, devíamos preservar ao menos uma palavra que nossos pais e avós usavam, usando-a também. Isso também é preservar a diversidade do meio ambiente.


Mário Eduardo Viaro é professor de língua portuguesa na USP e autor dos livros Por Trás das Palavras (Globo: 2004) e Etimologia (Contexto: 2011)

 Revista Língua Portuguesa

O Gerundismo


Locução com gerúndio mascara tensão brasileira em assumir compromissos

   Em locuções, o ge rúndio serve à  ação isolada, que se encerraria num sóato. Como se fosse contínua. Quando se diz "vou estar passadno o recado", o recado, que seria dado num ato só, perde prazo de validade.

  Transformamos a informação pontual (foco na ação e independente da passagem de tempo) num ação em curso.

   O futuro do indicativo " farei" e o composto "vou fazer" dão certeza, já o trem  "vou estar fazendo" é pura incerteza. Marca uma oposição entre promessa e esperança, a associação entre formalidade reverencial e falta de compromisso, forma categórica e relativização. Talvez usado por quem não veste a camisa de alguma atividade que considera instável, o gerúndio ajuda o enunciador a não assumir responsabilidade futura.

   Revista Língua Portuguesa